Luís Henrique de Oliveira
Ajudar sem julgamento
Nada é mais básico no trabalho do Bert, e mais mal compreendido do que a proposta de reconexão. Nossa ajuda por meio da abordagem sistêmica ocorre pela identificação daquilo que está emaranhado1, para, logo em seguida, possibilitar a reconexão com aquilo que está separado2 . O cliente nos procura, essencialmente, por querer livrar-se daquilo que, para ele, seria um recurso insubstituível de força e solução, ou, então, por uma situação que contém uma mensagem sobre uma postura desequilibrada frente à vida, que trará consequências mais graves se não percebida e respeitada.
A solução está em reencontrar um dos pais, acertar as contas com um cônjuge atual ou anterior, acolher uma doença crônica ou diminuir os níveis de acusações contra si mesmo – em todos esses exemplos o cliente quer “livrar-se” de algo, e justamente por esse motivo encontra-se preso. A situação é ainda mais intensa quando o cliente está em uma sobreposição de contexto3 , uma vez que a separação, ou o “livrar-se”, nem mesmo tem ligação com a realidade, e, sim, com uma imagem interna projetada sobre o outro. Não importa qual seja a questão, no profundo, o cliente somente possui um problema por nutrir julgamentos contra algo, alguém ou ele próprio. O ponto cego, muitas vezes, é que esse julgamento protege o amor que precisou ser ocultado.
Não raro, a acusação que o cliente sustenta contra alguém é um mecanismo de fuga para o amor que outrora foi decepcionado. O sentimento profundo de amor não recíproco faz com que o cliente construa estórias baseadas em julgamentos, para, com isso, sentir-se seguro, sem entrar em contato com os verdadeiros sentimentos e, consequentemente, com a dor. Um ajudante eficaz apenas lembra o quanto o ajudado ama profundamente os seus – e isso só é possível quando o ajudante é capaz de, primeiro, acolher a história do outro.
A separação interna que o cliente experimenta, estruturada sobre imagens internas que não condizem com a realidade, pode encontrar unidade novamente quando o ajudante recepciona tais imagens sem sentimentos ou moral, de modo que, nesse ponto, o amor pode ser percebido novamente.
Se, então, metaforizarmos que o cliente está um mosaico, separado de si mesmo e de seus amores para suportar a dor, o receptáculo onde essas partes podem ser unidas é o coração sem julgamentos do ajudante. Nossa tarefa, então, é antecipar aquilo que o cliente precisa fazer – os pais, o câncer, a escassez ou o parceiro anterior são amados pelo ajudante antes do ajudado ser capaz de fazer isso. Uma vez que o ajudado, mesmo negando, nutre um profundo amor por tais questões, quando o ajudante oferece esse acolhimento, há um profundo alívio.
O julgamento que o cliente sustenta é o que mantém o problema e o separa da fonte de recursos que possibilitariam a solução – logo, o ajudante capaz de mover-se para o cliente sem julgamento faz em seu próprio coração aquilo que o cliente precisará fazer também. Primeiro, o ajudante olha para a história do ajudado sem julgar, com isso, o ajudado pode fazer o mesmo.
E o que é Julgamento?
A frase mais simples e completa que sustenta os nossos julgamentos é a ilusão de que eu faria melhor do que o outro, ou do que nós mesmos em um momento do passado. Juntamente com um julgamento, encontramos um sentimento de reprovação, de que o outro não está fazendo aquilo que é certo, e não raro, também uma sentença sobre o outro.
A injustiça dos nossos julgamentos começa quando consideramos que quem fez pouco, o fez por má vontade. Arrogamos o “fazer melhor”, olhando para os recursos que possuímos nesse momento, sem percebermos que foram exatamente os erros anteriores que possibilitaram tais capacidades no presente. Um coração sem julgamento sempre é acompanhado da consciência de que todos fazemos o melhor que podemos, com os recursos que temos, no momento em que vivemos. Somente somos capazes de ter empatia pelo outro, depois de reconhecer que, até aqui, fizemos o nosso melhor, e que a única direção para onde ainda podemos exigir mais de nós mesmos é para frente.
No Sermão da Montanha, Jesus falou sobre o julgamento. “Não julgar para não sermos julgados” – pode simplesmente estar nos lembrando que a mesma medida de exigência que eu tiver em relação ao outro eu terei comigo mesmo.
O contrário também é válido, quando eu posso nutrir afeto por mim, assim será pelo outro. Jesus também não disse para deixar de tirar o cisco do olho do irmão, mas disse para, primeiro, remover a trave dos nossos olhos, para, assim, vermos com clareza. Compreendo, aqui, que é essencial para a vida sabermos discernir o que é útil ou não, porém, só podemos discernir bem acerca daquilo que já alcançamos clareza em nossa própria vida.
O julgamento está presente quando proferimos nossa opinião em conjunto com uma carga emocional negativa – nesse momento estamos contando que ainda não fomos capazes de amar aquela parte de nós que já fez aquilo, faz, ou, então, que seria capaz de fazer, e está contida, tal como um leão em uma jaula. Talvez, ainda, em uma perspectiva sistêmica, o julgamento também represente acontecimentos na história familiar que colocaram meu clã em risco – agora, então, o julgamento serve de sentinela para que eu não me reaproxime do perigo.
A reconciliação
O oposto de julgamento é a empatia, e ela se manifesta na vida pela reconciliação. Tudo aquilo que faz parte e que pode participar do jeito que é, está repleto da potência empática, capaz de perceber a beleza em tudo. O julgamento separa, difere, eleva-se sobre algo. A empatia encontra um lugar de igualdade, atenta para as semelhanças, unindo. Ainda sobre a empatia, quando ela é exagerada torna-se salvação e autossacrifício. Já a justa medida da empatia aprecia o outro e o deixa ser, sem interferências. Assim como o julgamento manifesta-se pela solidão, a empatia é vista pela nossa capacidade de reconciliação.
Em primeiro lugar, a reconciliação comigo mesmo, e com cada parte de mim, que fez o melhor que pode em cada momento. Significa que já sou capaz de olhar para a minha história com dignidade e força, reconhecendo a beleza que há nela. Já me perguntei sobre o que acontece com quem tem tantas histórias interessantes pra contar da vida, se essas pessoas de fato têm uma vida especial com acontecimentos mais marcantes, e o que eu descubro, vez após vez, é que tudo depende da nossa conexão – alguém reconciliado com a própria história já encontrou o protagonismo em cada cena, revelando todo o espetáculo.
Em segundo lugar, ou primeiro, não sei, a reconciliação precisa acontecer com nossos pais. Fico em dúvida se é primeiro ou segundo porquê nosso amor próprio é consequência do amor que sentimos pelos nossos pais, ao mesmo tempo que nossos desamores por eles manifestam-se em autorreprovação – e ao mesmo tempo só podemos reconhecer o nosso lugar de filho e tomar o amor deles depois que tivermos em contato com o amor que sentimos por eles, mesmo que as nuvens ainda o encubram. A grande maioria dos nossos julgamentos contra nós mesmos ou contra o mundo estão, intimamente, ligados com aquilo que ainda julgamos nos nossos pais.
Por último, e agora tenho certeza (por hora), vem a reconciliação com a realidade. Depois de alcançarmos esse lugar interno de acolhermos nós mesmos com carinho, juntamente ou logo antes de acolhermos tudo que chegou até nós através de nossos pais, podemos nos submeter à realidade. Na verdade, todos os julgamentos também são afrontas contra a realidade, uma vez que há a tentativa de mudar ou transformar a realidade, para satisfazer os nossos caprichos.
Ajudar sem julgamento, portanto, envolve ter sido bem-sucedido em acolher cada pedaço da história que me trouxe até aqui, pessoal e familiar, em reconciliação comigo mesmo, com meus pais e com a realidade, ampliando, assim, meus recursos empáticos e desenvolvendo a capacidade de apreciar a beleza que há em cada expressão única da vida. Feito isso, a trave do meu olho poderá ser removida, para, só assim, ver o cisco do olho do outro com clareza.
1. Quando, por exemplo, estamos identificados com um sentimento de um ancestral, incoerente com o contexto atual em que estamos inseridos.
2. Por exemplo, o amor dos pais, ou um aspecto pessoal do cliente, como uma característica ou um momento da vida onde ainda nutrimos autopunições.
3. Quando os sentimentos vivenciados são emprestados de outra relação dentro do sistema familiar.