Daniela Cardoso
Os mortos ficam em nós...
Há pessoas que nos preenchem! Nos aquecem! Tocam nosso coração de modo tão especial que nos fazem ampliar, cabendo um pouco mais de mundo no peito. Essas figuras cruzam nosso caminho na missão de nos desarmar, desencapar e deixar nossas dores doerem um pouco menos. Quando estamos com elas, nos mostramos um pouco em essência. Somos mais vivos, mais “bobos”, mais abertos, mais HUMANOS. Pessoas assim são um presente para mim, para você, para a humanidade.
Sabemos quem são porque elas servem à vida de um modo singular, trazem dentro a alegria da própria existência, como se a elas coubesse andar pelo mundo “contaminando” a todos com a alegria de viver. Paulo Gustavo era esse tipo de gente. Um tipo grande! Que entrega muito mais do que se poderia pagar-lhe em vida. Uma partida, uma separação, uma ausência assim nos dói como parte nossa. E é mesmo. Somos também um pouco de quem nos aquece a alma. Ele, com sua capacidade única de nos ampliar para o mundo, com seus textos, suas graças, suas falas, sua coragem, sua atitude e amor, faz cada um de nós um pouco dele na espontaneidade que nos contagiou na cadeira do cinema, no escuro, na saída. Ninguém que assistiu ao discurso de Juliano no seu casamento no filme “Minha mãe é uma peça” saiu igual a quando entrou.
Encontrar com um gay na saída do cinema ganhou uma cor nova a partir dali. Quem já não manifestava preconceito, sentia-se até mais íntimo de cada um, como se pudesse, agora, ver de verdade essa pessoa. Quem tinha restrições e exigências, no mínimo, sentia-se agora meio constrangido. Por isso, esse grande ator é recurso de vida, porque o riso é recurso que abre portas.
E agora, sentada de frente a uma tela, eu me pergunto: como seguir com ele? Como nos encher dele a tal ponto que a falta nos doa um pouco menos? Quem sabe doar um pouco do que nos entregou brilhando na sua passagem por aqui. Bert Hellinger mostra um pouco desse caminho, dessa possibilidade na filosofia sistêmica. Aos vivos cabe o olhar que inclui os mortos. O olhar da paciência, da aceitação. Olhar no profundo dos olhos de quem morre e ouvir deles o que mais os deixaria felizes. A que ele dedicou sua vida? Ao riso, à alegria, ao amor ao próximo, à aceitação de si. Incluí-lo é deixar-se rir. Alegrar-se. Amar-se.
Aceitar-se. Sem preconceitos, sem limites, sem exigências, sem julgamentos. E amar na atitude, como ele queria. Se pudermos homenageá-lo com um tanto da alegria que nos presenteou, ele, tal como todos os nossos mortos, pode ficar, agora, de um jeito diferente em nós, na nossa vida, na nossa prática. É assim que eles, os que partiram, podem ficar conectados e presentes para sempre. Quando os olhamos com dignidade, honra e admiração.
Muitos de nós, vivos, tememos olhar nossos mortos assim porque não queremos ver a força que atua neles. Mas se, corajosamente, me atrevo a olhar “nos olhos de uma pessoa que morreu, eu deixo-me também olhar por ela” (Bert). E muito de repente eu percebo que ela é completa e eu incompleta, ainda. Se meu coração se torna capaz de homenageá-la, posso, então, receber a bênção que me mantem vivo, que me segura no mundo dos vivos. É assim que o morto volta a atuar sobre o vivo. Primeiro, o vivo atua sobre o morto lhe dando o descanso, a paz, a aceitação, um lugar no coração.
Querido Paulo Gustavo, você sempre me fará falta, porque sou chata para textos de humor e você ganhou meu riso. Me olhe com carinho, enquanto eu aprendo a rir e me alegrar. Eu ficarei por aqui, um pouco mais e levarei um pouco de ti em meu coração.
Para quantos poderíamos dizer internamente essas palavras? Quantos dos nossos ainda precisam descansar em nós?
“Eu me despeço agora dos que morreram e de seus assassinos. [...] Contudo, assim como Jacó, quando atravessou o Jacob, não largou o anjo com quem lutava até receber dele a bênção, assim também só poderemos deixar esses mortos quando os reverenciarmos e formos abençoados por eles. Então eles se retiram em silêncio e nós, ainda que marcados, atravessamos livremente, com nossos bens, o rio que por algum tempo ainda nos separa deles” (Hellinger, Bert).
Que possamos todos carregar a força atuante dos que partiram, que possamos todos ter o olhar de carinho deles, que possamos todos honrar ao que se vão
e que eles sejam lembrados pelo melhor de cada um.