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  • Foto do escritorDaniela Cardoso

Ponto de vista – realidade ou inferno?

É o ponto de vista que nos traz o sentido de nossas vivências. Não é barbada assumirmos que no fundo, nem tão fundo – posto que é visível, somos responsáveis por nossos parâmetros diante da realidade. É como se eu pudesse me afogar em dor ou me entregar em vida, conforme a capacidade que tenho de ampliar-me ou não diante da vida e seus movimentos.

“Tenho um vazio que me dói”. “Meu trabalho é bom, queria ser mais grata pelo que me pagam, mas me falta algo”. “Eu tenho uma vida boa, mas não tenho alegria”. “Eu tenho um marido amoroso, mas ele me irrita com seu amor”. “Tenho uma tristeza insistente”. “Minha mãe (pai) sempre foi contra o que faço”. “Minha mãe não fica feliz com minhas vitórias”...

E a lista de frases poderia nunca acabar. Eu escuto isso em diversos atendimentos e já ouvi de mim mesma no mais profundo silêncio. É o que aprendemos sobre o amor e o descanso na relação com os pais que irá grudar-se na forma como percebo o amor e a vida mais adiante. E aqui a realidade nem sempre é a mais importante. Somos tomados e moldados pela forma como fomos capazes de interpretar no momento único. E, quando criança, somos feitos de emoções e sensações. Minha sobrinha, 10 anos, nos disse que a mãe dela sempre a abandona. Olham-nos estarrecidos na mesa do almoço. Questionada de quando a mãe fazia isso, ela responde: ela sempre viaja. A mãe fica dois dias fora a cada 15 dias.

Nunca foi a viagem, sempre foi a saudade. Mesmo que a mãe responda com o mais óbvio, “sempre volto”, faço tudo pra que você tenha o melhor”, “não é por mim que trabalho”, “brigo pra você ser a melhor”, “eu só queria te ensinar pra você não sofrer”, “fiz o que pude”... e tantas outras, a resposta pode surgir... “mas naquele dia eu tinha prova”, “mas naquele dia eu tive dor de barriga”... E é essa imagem interna que reverbera no adulto e nos faz “vazio”, incompleto, saudosos de um amor que sempre esteve ali.

Por mais protegidos e amados que formos, do jeito possível, a vida é surpresa e momento. Somos empurrados e embalados pelo ritmo de fatalidades e dádivas da realidade. Mas engana-se quem se posiciona pensando que é neutro nisso. Somos participantes ativos. Negar-se ao movimento contínuo e desigual é delegar-se um destino desperdiçado, com talentos soterrados. Uma das minhas pequenas, nem tão pequena, 14 aninhos, ao ser exposta em um exercício de pais ideais e pais reais, nos contou:

“Os pais ideias são como eu quero; mas os reais parecem ser o que eu preciso”

Eita! A mim, pareceu que ela deu conta muito mais do que tantos de nós adultos ou supostos. É que tomar pai e mãe tem tudo a ver com isso: abrir mão do que quero para encontrar o que preciso. A imagem que me vem é do pássaro que ao entrar em casa se bate contra o vidro tentando encontrar a saída e quando encontra, pode ser uma fresta, um buraco cheio de teia de aranha, uma janela grande, enorme... ele voa do mesmo jeito. Tomar a vida e os pais é isso, não considera o como a vida chegou até nós, mas entende que era o possível para chegar e decide-se voar. É decisão de quem reconhece no corpo a vida que pulsa.

E quando foi que perdemos a inocência ou a capacidade de nos movermos diante da vida pelas sensações que nos ampliam, como a criança que reconhece na pele a diferença do querer e do precisar? Quando nos comparamos, quando resolvemos criar padrões para o amor e limitá-lo a umas poucas formas de dizê-lo. Perdemos o olhar que nos faz ser ao invés de pensar. Eis a verdadeira noção de gratidão, contemplar cada coisa que chega até nós. Contemplar! Uma palavra com tanto sentido. Contemplar é perceber, receber, concordar, admirar e sentir-se parte no mesmo instante que se é presenteado por algo. Imagine-se diante de uma bela cachoeira, escute o barulho da água, sinta o friozinho gostoso que vem da pedra molhada, sinta nos seus pés e me conte. Não, não conte. Porque as palavras nunca poderão abarcar o ser, a sensação. Sinta, seja. Tome posse do seu ser.

Nascer vivo significa sempre ser lançado em um ambiente, um conjunto de seres com quem temos um contrato vitalício. Estaremos para sempre em convivência ainda que interna. A família é um primeiro lugar e o mesmo que irá me acompanhar de modo que sempre tenho para onde voltar. Mas eu posso escolher me afastar de tudo que for intenso demais, doloroso demais. Qualquer situação nesse meio que me limite, me enjaule pode ser superada se nos afastamos com reverência. Se ficarmos muito muito perto, totalmente dependentes, envoltos nas dores, nos dramas, nos traumas, corremos o risco de precisar chamar o Barão de Munchausen, aquele que propôs a possibilidade de arrancar-se do lodo puxando os próprios cabelos. Eu, às vezes, preciso respirar e decidir por mim mesma o que é melhor agora. Eu, quase sempre, me sinto diferente e igual. E tomo consciência de que para dar certo pra mim, precisa ser o meu destino. Os meus medos, as minhas ousadias. É somente nesse jogo que eu posso ser. Seguidamente, olho pra minha mãe e imagino que a realidade imaginária dela, construída com dor, escassez, medo, é mesmo muito dura.

Feridos de morte no início, passaremos o tempo espreitando para os lados: quem agora vai me ferir, de onde virá o próximo golpe, a próxima traição? (Lya Luft)

Talvez seja assim que alguns de nós vivam. Talvez esse algum seja seu pai, sua mãe. Porque bem antes do final das contas a gente descobre que pai e mãe são uns sujeitos normais, como eu e você, e que fizeram por seus filhos o que sabiam fazer, ou o que puderam fazer. E nisso tudo que fizeram, podemos perguntar e eu o que fiz? O possível? Usei mesmo tudo o que sei?

Desperdiçar uma vida congelada na reclamação do querer, não se permitir ampliar e entregar-se à vida com todas as suas potências, talentos e alegrias é um fracasso humano. O verdadeiro fracasso. Deveria nos doer mais que a dor da rejeição do abandono ou do desamor. Eles foram assim ou assado, e eu sou o que diante disso? O pássaro que voa ou aquele que, no espaço, escolhe o chão.

Não sei qual o seu talento, mas você sabe. O que sei é que não importa qual seja, pode ser que você seja uma excelente cozinheira, pode ser como o pai da minha amiga, Daiane, que ela apresenta como o homem que faz o melhor reboco de parede que ela já viu; pode ser que seja como a Carmem, uma brilhante administradora, ou como a Maria que é dona de casa, todos podemos nos amar pela dignidade de ser o que somos em nosso destino e nos ampliar pelo nosso próprio valor. Mas para isso, só tem uma única saída: voar.

Tomar a vida do jeito que veio, honrar a mãe e o pai possíveis pra mim, guardar tudo de bom bem perto do coração, encaixotar tudo de não tão bom, envolto em um papel de compreensão da humanidade, e permitir-se ampliar pelo outro à medida que me mostro como eu. Me amar pelo que sou. Porque o que sou é digno.

A essa altura, meu leitor, pode estar desistindo do texto e pensando: escreve como se fosse fácil. Não é. A má notícia é que rasgar-se assim dói, no início; a boa nova é que o remédio, posto que fecha a ferida, não é amargo, ao contrário, tem o gosto que você permitir. Pode ter gosto de vitória, de casa nova, de casamento, de criança, de aconchego, de colo, de netos, de dinheiro, de saúde...

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