Daniela Cardoso
Quando vai ficar fácil pra mim?
Você já teve um segredo? Um segredinho que você não confessa pra ninguém? Algo que você fez ou pensa que fez e não conta pra ninguém? Nem mesmo pra você. Segue na vida como se isso fosse algo tão banal que pudesse ser apagado. Segue a vida na crença de que se nem você mesmo fala, porque ele traria efeitos pra sua vida, não é mesmo?
Doce ilusão. A alma sabe e quer de fato que ele seja olhado. A alma coletiva trabalha para que esse fato ou acontecimento seja olhado corajosamente.
- Eu sabia que tinha alguém contra mim, deve ser essa tal alma coletiva. Ela me espiona?
Nada disso. É que se eu e você escondemos do mundo, é porque julgamos. É porque isso é, pra nós, motivo de medo, vergonha, ou ambos. Os efeitos de julgamentos seguem uma lógica simples: julgado – excluído. Sim, cada vez que eu julgo meu tio alcoolista, o estou excluindo. Por quê? Porque ele é um ser alegre, generoso, prestativo e um profissional muito bom no que ele faz e, com o tempo, também alcoolista. Tenho memórias dele com o carro cheio de primos indo pra sorveteria, lembro dele abastecendo o carro do meu irmão porque,
pra ele, isso era uma alegria. Foi ele que fez a casa em que mamãe mora, e, em outros tempos, fez uma pra mim, na qual eu fui bem feliz. Então meu tio é muitas coisas e isso tudo sendo alcoolista também. A inclusão exige ampliação, ter o gosto de sorrir com essas memórias. Se eu reduzo esse cara às minhas restrições com o álcool, ele é excluído. Se eu sinto vergonha da prima prostituta, no profundo da alma, ela sabe que eu acho o destino dela pior que o meu. Isso afasta.
A postura de exclusão é ardilosa. Ela se esconde dentro da gente. Meu bisavô era homem de posses. Homem rude também. Ele não se agradou quando as filhas quiseram escolher seus maridos movidas pelo coração. As belas moças se encantaram com o milico, o administrador da fazenda, e até o peão. Minha vovó ficou com o administrador! Homem bonitão, decidido e carinhoso. Esperta ela, foi feliz. Mas ficou sem dinheiro. O papai dela entendeu que não era direito desse homem gastar o seu dinheiro com seus netos.
Eu acompanhei vovó no velório do papai dela. Lembro da tia e da vovó chorarem muito, até que eu, tomada pelas histórias que ouvia, perguntei:
- Mas se ele era tão ruim vó, porque você chora tanto? A outra respondeu:
- Por isso mesmo, porque ele tinha de ser tão ruim? Me “judiar” tanto? Por que ser assim? Agora tá aí morreu sozinho, meu Deus. E era um choro de dor.
Eu não pude entender naquele dia, como também não pude esquecer. Parece que sinto os cachos do cabelo dela na minha mão. Era amor. E eu não pude ver. Fiquei com a parte do julgamento. E segui na vida, achando que ou amor ou dinheiro. Não se pode ter tudo. Segui na vida achando mais seguro ficar no amor. Ricos não tem bom coração. Segui na vida ao lado dessas mulheres. Todas elas, eram 6. E eu seria forte o suficiente para qualquer perrengue. Eu nunca soube de onde aprendi cozinhar sem “quase nada”. Mas eu garanto que sei.
Segui na vida lembrando do bisavô só desse jeito. E nunca fui capaz de incluir esse homem na minha imagem interna de família. E sabe qual a pior parte? A de que nunca me “fez falta”. Era isso que eu pesava. Tá vendo como o excluído em julgamentos se esconde? Na exclusão, a gente acha que isso não tinha tanta importância. E com essa desinportância minha potência de poder econômico foi sendo boicotada. Minha potência para a abundância era vista internamente como perigosa, talvez eu, com dinheiro, fosse infeliz, sem amor. Meu bisavô, minha história, minha potência. Eu posso amá-lo mais livremente se não assumo pra mim o olhar doído de vovó. A memória embaçada de mamãe. Se eu permito que ele seja, pra mim, minha origem. Parte de mim, só o melhor. A chance que há de o amor fluir através de mim.
- Querida vovó, eu posso amar o seu papai, porque ele me deu de presente você! E eu me arrepio ao escrever, porque minha vida tem muito da tua. Mas agora vovó, pode ser mais leve pra mim. Me olhe com carinho, daí onde você está, enquanto eu aprendo que amor e dinheiro são amigos. Enquanto eu reposiciono o seu papai na foto interna da família.
Agora, volta comigo, você leitor. Se julgar o outro e assumir o ponto de vista das histórias que nos contam deu ruim pra mim, realiza aí o que é eu julgar a mim mesma? E lembre-se, eu faço isso cada vez que me envergonho de algo ou me silencio. Uma parte minha precisa seguir fora de mim. Uma parte minha fica lá na imagem interna de julgamento. E o problema todo nem está na parte – que na minha imaginação aparece como uma criança que chora emburrada num banquinho – está, sim, no pedaço que me falta.
Se eu não tenho a chance de me mostrar inteira ao mundo, eu também não tenho a chance de ser. E esse pedaço que falta tira de cada um a capacidade de sentir profundamente as emoções. As boas e as nem tão boas. Geralmente, somos chamados de fortes. Ah, quantas vezes eu ouvi isso sobre mim e me orgulhei. Em outras vezes, nos adjetivam de frios. Você não tem sentimentos. Nada é tão grande e nem tão pequeno pra esses olhares. É algo como estar na vida pasteurizado. Quase sempre nos sentimos no comando assim. Porque afinal pouco pode nos atingir.
Agora, a questão é: será mesmo que isso que você esconde, pode até ter esquecido, foi assim mesmo ? Na escola, aprendemos descrição e interpretação. Mas vejo que, na vida, não foi suficiente. Uma mulher de 50 anos chorou me contando que ela foi a culpada pela morte de seu papai. Ela me disse: eu não prestei socorro, quando ele precisou. Eu disse: quantos anos você tinha? Eu tinha 6, disse ela. E o que você se lembra? Lembro que ele caiu e eu, não sei porque, sai de casa e deixei ele ali. Fui andar.
Um susto, papai cai morto. Não posso ficar. Não posso sentir. Não quero ver. Agora eu imagino que poderia ter evitado. E sigo na vida, me punindo pela morte do meu grande amor. Não falo, porque eu não poderia suportar que mais alguém saísse de minha vida pelo que “fiz”. Silenciada, segue na vida pasteurizadinha. Tem medo de ficar sozinha. Tem vergonha da mamãe porque foi ela que lhe causou a maior dor. Ela é muito má. Essa imagem interna, sem uma parte significativa de si que se desvinculou na dor, segue sendo ampliada por outras situações. Ela não é capaz de ser feliz em seus relacionamentos. Ela não consegue ficar sozinha.
Aos 12 anos uma menina vivencia situação de abuso. Envergonhada, ela esconde. O que ela tem de errado que levou a isso? Ela não queria, ela ainda queria brincar e amar livremente. Mas isso não estava mais sendo possível. Por vergonha, ela resolve dar conta sozinha. Perdeu uma parte: um pedaço feminino, era mais seguro sem. Nunca foi feliz sem ele. Anos de terapia e o assunto continua escondido, porque ele não tem importância. Porque isso nem significou nada, ela deu conta. Será? Não, ela não deu conta, era muito cedo pra ela. Ela seguiu fragmentada. Para fragmentados, a vida tem menos cor, e eu falo de cor mesmo. Tem menos brilho. O mar é só o mar, uma quantidade imensa de água. O coração dela fica separado das emoções. Tudo na vida dela pode ser pensado. Tudo pode ser planejado e ela está no comando.
Mas nada dá muito certo. Até que ao longo do caminho, essa menina, já não tão menina, vai revisitando seu passado, vai dando novas interpretações, vai colorindo com o dedo a sua alma, trazendo a criança que se encanta com o mar, a menina que gosta de maquiagem, a mulher que tem poder e, adulta, sabe quais são os limites dela. Essa tem uma chance enorme agora. Ela integra as partes suas e ganha força. Duas frases que escuto em consultório: Me sinto mais leve, saiu um peso. Me sinto mais forte, eu não sabia dessa força. Olhemos, corajosamente, para aquilo que se esconde de fininho em nós e deixemos tudo voltar ao seu espaço. Não estou dizendo pra sair aí contando o que te traz dor, mas estou compartilhando com você que pode olhar diferente e deixar uma parte sua voltar agora que já está seguro.
Tomados por essa força interna que brota da fonte e de tudo que somos, ao mesmo tempo e agora, misturados, é que podemos trazer felicidade e leveza para cada dia. É como um frio interno que me faz segurar os lábios ao sorrir.